Queijo e Goiabada

 


Queijo e Goiabada

            A amizade é um dos mais belos laços de amor humano, não é fugaz como a paixão, não nasce de dever como o parentesco, nem possui segundas necessidades como o amor carnal. Diferente de muitas outras relações, a amizade surge unicamente da afeição entre duas ou mais pessoas, sem interesses materiais ou físicos, apenas afinidade mutua, isto, claro, em se falando da verdadeira amizade. Assim era a de Dias e Fernando.

            Conheceram-se ainda na infância, Dias se mudou para a rua onde Fernando morava, tornou-se seu vizinho, logo que se viram a amizade fluiu instantaneamente, pois ambos tinham a mesma camisa de futebol. Conversaram por horas sobre futebol, do jeito que só as crianças sabem fazer, sem nenhum dado real, apenas por especulações pueris. No meio da conversa descobriram que gostavam dos mesmos desenhos animados, músicas, esportes e até das mesmas comidas, ou seja, eram praticamente a mesma pessoa nascida de pais diferentes, não havia como não se tornarem melhores amigos.

            Originou-se então uma amizade muito íntima, estudaram na mesma escola, jogavam os mesmos jogos, dormiam um na casa do outro, contavam as mesmas piadas, brigavam pelos mesmos motivos, tinham os mesmos amigos e os mesmos inimigos. Assim cresceram os dois, como um só, tanto que seus conhecidos não lhes chamavam apenas de carne e unha, iam além, diziam que eram pé e chão, mão e luva, tinta e caneta, olho e óculos, enfim, tudo que completa o outro, mas a analogia que chegou a virar apelido foi Queijo para Dias e Goiabada para Fernando, era assim que todos os chamavam.

            Aos 16 anos estavam ambos na idade especial dos amores e com ela uma grande complicação lhes apareceu. A mãe de Goiabada o havia colocado em uma escola de artes marciais, Queijo quis participar também, mas sua mãe resolveu lhe colocar em aulas de dança para que seu ciclo de amizades se ampliasse para mais de uma pessoa. Estavam então separados os amigos, mesmo que fosse por apenas alguns horários. Segundas, quartas e sextas à noite, Goiabada treinava Caratê; terças, quintas e sábados à noite, Queijo treinava Dança. O que um aprendia ensinava para o outro, assim os dois se tornaram bons dançarinos e lutadores. Um novo conceito de vida surgiu para eles, seus atores prediletos viraram Bruce Lee e Patrick Swayze, seus filmes favoritos Karatê Kid e Flashdance, seus jogos de videogame mais jogados eram Mortal Kombat e Dance Dance Revolution, enfim, toda a vida deles passou a se resumir em lutas e danças. Tudo continuava perfeito, até que ela surgiu.

            Ana Júlia Martins da Rocha, esse era o nome da garota que mudou a vida desses dois amigos. Vinda do interior ela veio morar na mesma cidade que eles, sempre treinou, desde muito cedo, caratê e dança, sendo já uma exímia mestra nessas duas artes aos 16 anos de idade. Assim que chegou inscreveu-se para aulas de caratê nas segundas, quartas e sextas à noite, e nas aulas de dança nas terças, quintas e sábados também à noite. Goiabada a conheceu primeiro, seu mestre a apresentou pelo nome de Júlia Rocha, uma garota faixa preta vinda do interior. A beleza e graciosidade de Júlia encantaram Goiabada de imediato, ela tinha a vantagem de ser uma menina bonita e ser muito boa em caratê, não tinha como esse aficionado pela arte oriental não se apaixonar por ela.

            Ao anoitecer, Goiabada foi louco à casa de Queijo, exalando felicidade contou que conheceu o amor de sua vida, falou sobre a beleza de Júlia Rocha e sobre como ela era especialista em caratê. Queijo ouviu tudo com muita satisfação, mesmo que estivesse com um pouco de ciúme da garota, ficou alegre com a descoberta do amigo e, pela descrição feita, compreendeu o motivo de tanta paixão. Goiabada foi embora saltitando, pensando em como faria para conquistar sua amada, enquanto Queijo ficou em casa a se perguntar quando seria a sua vez de amar.

            Queijo não teve de esperar muito, na terça-feira à noite conheceu o amor. Ana Martins era o nome da garota que dançava como uma diva, tinha o sorriso mavioso, cabelos mimosos e elegantes, ostentava uma postura elegante, e, como se não bastasse tudo isso, ela ainda era um doce de pessoa, amigável e gentil. Dançava com todos e procurava ajudar a quem quer que fosse, ou seja, não existia a possibilidade desse amante da segunda arte não se apaixonar perdidamente por essa menina.

            José Augusto da Silva Rocha era um grande mestre de caratê, desde muito jovem ingressou numa academia da arte e, mesmo agora aos 40 anos, não a abandonou mais. Seus colegas de treino, inclusive seu primeiro mestre, lhe chamavam de Rocha, vez por outra Augusto Rocha. Quando nasceu sua primeira filha, ele logo tratou de fazer dela uma lutadora, treinou a menina desde muito nova. Nos treinos ele deixava de ser o carinhoso pai José para virar o rigoroso mestre Augusto Rocha, a fim de que a garota não levasse o caratê como brincadeira, mas sim como estilo de vida, sempre com a maior seriedade. Deu certo, afinal, ela ainda muito nova, pôde pôr uma faixa preta na cintura, grau elevado na arte, que mostrava o quanto ela se dedicou e o amplo conhecimento de técnicas que ela aprendeu. A menina Ana Júlia Martins Rocha ficou conhecida na academia, assim como seu pai e mestre, pelo seu segundo e quarto nome, Júlia Rocha.

            Maria Clara Diniz Martins era uma excelente dançarina, aficionada pela dança, ia sempre à apresentações de balé, tango, samba entre outras tantas que me fica difícil discriminá-las. Todos os seus horários vagos eram dedicados à música, seus amigos eram todos dançarinos, eles a chamavam de Clara, os que não lhe eram íntimos lhe chamava de Clara Martins. Conhecer Augusto foi um milagre daqueles que só o Destino pode explicar, dois seres de mundos totalmente distintos veem-se, agradam-se e terminam por amar-se, é assim que é o amor, esquisito em sua essência. Sua filha, que desde muito nova foi assediada pelo caratê, não pode fugir da dança que sua mãe lhe impôs como hobby, não que ele não gostasse, muito pelo contrário, ela amava, só nunca soube dizer o que amava mais, a dança ou a luta.

            Assim, duas almas gêmeas quiseram se tornar três. Goiabada e Queijo haviam encontrado a faca de suas vidas, mas nem mesmo eles sabiam o que estava acontecendo. Goiabada tornou-se grande amigo de Júlia, ela sempre lhe retribuía os gracejos e elogios que ele fazia. Queijo também tornou-se grande amigo de Ana, dançavam por horas e ela não se animava a querer outro parceiro para dançar. Ana era uma menina dividida entre seus dois amores, dança e luta, é normal que ela se apaixona-se por um garoto que gosta de luta, como também por um que gosta de dança. Os amigos desconheciam que amavam a mesma mulher, ela conhecia os dois, mas não julgava que eles fossem amigos, talvez se soubesse não daria esperança aos dois, ou até mesmo não daria a nenhum, mas não a julguemos, afinal já vimos que o amor é esquisito e como tal foi capaz de tornar essa história um conto digno de nota.

            Por mais que o leitor incauto continue a calcular que Ana Júlia é uma menina leviana por deixar-se cortejada por dois rapazes, venho aqui, eu que não faço parte da história, em sua defesa. Ela realmente dava esperança aos dois, e até já disse para ambos que os amava, mas nunca chegou a consumar nem mesmo um leve ósculo, muito conhecido hoje como selinho, em nenhum dos dois, pois resolveu que antes deveria decidir qual dos dois amava mais.

            Queijo e Goiabada cada dia ficavam mais amigos (se é que isso era possível), pois a inconstâncias de suas amadas, que no fim era a mesma garota, fazia com que eles se identificassem. Ambos sofriam por uma garota que lhes dava a plena certeza do amor, mas lhes negava até a mais ínfima carícia. Queijo, que amava muito seu amigo Goiabada, passou a odiar Júlia, que tanto fazia seu amigo sofrer, Goiabada por sua vez tinha ojeriza a Ana que parecia brincar com o sentimento de Queijo. E assim seguiram os dois, amando e odiando a mesma garota.

            O Destino, pai cruel da tristeza humana, quis brincar com esses três bons jovens, que amavam-se mutuamente, mas não podiam ser felizes justamente por isso. A dança e a luta já não eram suficientes para nenhum deles, precisavam amar, porque o amor é um sentimento maldito que não se esvai nem do mais controlado coração, pode dominar a mais racional das mentes e leva o ser humano às mais impensáveis bobagens.

            Queijo resolveu desistir de Ana, que há muito o iludia com um falso amor, para tal deveria desistir da dança, pois não conseguiria deixar de amá-la se tivesse que continuar a vê-la. Goiabada, que sempre costuma pensar de maneira semelhante ao seu amigo, resolveu terminar suas ilusões desistindo do caratê e consequentemente de Júlia. Ana Júlia, quando soube da decisão de seus dois amores, ficou triste, tristíssima se o narrador fosse José Dias, mas não o é, e nem eu tenho a ousadia de me comparar a Machado, apenas triste, no mais, posso dizer desolada como meio de exacerbar seu sentimento, que era sofrível. Imagine o leitor, que na mesma semana, você viesse a perder dois grandes amores, muitos corações já se quebraram por bem menos, mas nem mesmo a separação iminente de ambos fez a garota se decidir.

            A resolução dos dois foi concluída, abandonaram seus hobbies e viram-se destituídos das coisas que mais lhe agradavam, não tinham mais treinos de luta ou dança, até mesmo o amor lhes havia sido afastado. Depois de muito sofrer tiveram uma ideia que diminuiria a dor sofrida por eles, resolveram trocar os hobbies, Goiabada faria dança, onde não teria de sofrer ao ver sua amada Júlia, enquanto Queijo faria caratê para se afastar de Ana.

            Não podia haver erro maior.

            Queijo foi quem primeiro recebeu o golpe. No primeiro dia do treino de caratê descobriu a tragédia, logo ao entrar viu sua amada Ana Martins, a exímia bailarina, empunhando uma faixa preta, distraída a ensinar golpes aos garotos menores. O mestre da academia lhe convidou a entrar, mas ele se reteve na entrada, perplexo. Logo que Ana notou sua presença, deu um pequeno grito de surpresa e felicidade. Ainda estático, ele esperou que ela viesse em sua direção, quando ela chegou o mestre lhe perguntou “Você o conhece, Júlia?”. Ao ouvir o derradeiro nome, Queijo saiu de seu estado de estupor e fugiu, correu como nunca havia corrido antes em sua vida. Estava com raiva, magoado e confuso, seu amor e seu melhor amigo estavam a lhe enganar. Sua mente embaralhada não conseguia raciocinar que aquilo podia ser um mal entendido, só pensava em traição vil. Chegou em casa mal, teve febre, não conseguiu dormir, no outro dia faltou aula.

            Goiabada achou muito estranho, seu amigo nunca faltava aula sem lhe avisar, ficou preocupado. Todos na escola lhe perguntavam por Queijo, nunca os haviam visto separados, Goiabada, envergonhado por sua ignorância, lhes respondia timidamente que não sabia. Logo acabou a aula foi à casa de seu amigo, não havia ninguém. Jamais havia passado por tal situação, sua aflição seria capaz de deixá-lo doente se sua mãe não lhe dissesse que viu Queijo sair pela manhã com sua mãe, foram ao hospital por causa de uma febre. Goiabada quis ir ao hospital velar pelo amigo, a mãe lhe proibiu. Continuou angustiado, mas saber o paradeiro do amigo acalmou um pouco seus ânimos. À noite foi ao clube de dança, ao chegar se deparou com Júlia Rocha, surpreso foi lhe falar, logo ao vê-lo ela alvoroçou-se, pensou que ele havia falado com Queijo, teve um ataque de nervos e desmaiou. Goiabada foi acudi-la, mas assim que ouviu as pessoas preocupadas perguntarem “Você está bem, Ana?”, entendeu que ela também era o amor de seu melhor amigo. Um turbilhão de sentimentos lhe invadiu a alma fazendo com que ele também tivesse um ataque de nervos e desfalecesse.

            O Destino, esse inclemente agente dessa história, fez com que esses três jovens fossem levados para o mesmo hospital. Três corações e uma só ferida. Médico nenhum pôde dizer o que eles tinham, apareceram no hospital aparentando estarem às portas da morte, houve suspeita de aneurisma, mas nada se concretizou, ficaram internados roendo a dor do amor. Queijo acordou de madrugada, não havia ninguém em seu leito, se sentia melhor, pelo menos fisicamente, pois emocionalmente estava em frangalhos. Levantou-se e foi procurar um banheiro, não pode conter um grito abafado ao ver Goiabada, que também procurava um banheiro, no corredor do hospital.

            Nada disseram, apenas se encararam, julgavam-se traídos e palavras, nesse primeiro momento, seriam vãs. O corredor parecia vazio e eles por alguns minutos permaneceram a se fitar, até que não puderam mais resistir à ira e engalfinharam-se. Nada podia ser mais triste, duas pessoas que tanto se estimam brigando é uma cena abominável de se ver e nunca deveria acontecer. Cada golpe desferido doía em ambos, pois batiam na pessoa mais prezada de suas vidas e feri-la era ferir a si mesmo. A Fortuna, que até agora só machucou nossos heróis, intercedeu de maneira a ajudá-los. Ana Júlia, sentindo-se compelida a sair de seu leito, alguns dizem que também com vontade de ir ao banheiro, mas eu prefiro acreditar que ela tenha sido impulsionada pelo amor, encontrou as duas chaves para seu coração trocando socos e pontapés. Bastou-lhe uma súplica rápida para que os dois parassem a luta, claro que o fato de eles estarem apenas esperando um motivo para pararem ajudou bastante.

            Ana Júlia chorou, o que levou os amigos a chorarem também, mas logo tentou se explicar. Queijo e Goiabada vendo que tudo não passava de um mal entendido riram e fizeram as pazes, explicaram a ela que eram amigos de longa data e por coincidência se apaixonaram ao mesmo tempo por ela. A desavença havia sido desfeita, mas o problema maior ainda persistia, como fazer para que esse triângulo amoroso fosse resolvido.

            Queijo, que acima de tudo amava o amigo, prontificou-se a afastar-se de Ana, o que prontamente Goiabada recusou, propondo ser ele a se afastar de Júlia. Insistiram muito nessa ideia, sem nenhum dos dois ceder, até que Ana Júlia disse que preferia ficar sem os dois a ser pivô de um afastamento de tão bela amizade. A situação parecia insolúvel até que uma ideia surgiu em conjunto na mente de Queijo e da de Goiabada. No começo relutaram em dizer, com medo de ofender a garota, no entanto criaram coragem e propuseram que tudo continuasse como era antes, ela seria namorada de Goiabada as segundas, quartas e sextas, enquanto Queijo a namoraria as terças quintas e sábados. Ana Júlia inicialmente ofendeu-se com tal resolução, seu senso de pudor lhe impedia de aceitar, todavia nada supera o amor e decoro nenhum no mundo podia separar esses três, aceitou.

            Muito tempo se passou e eles ainda vivem dessa maneira, são felizes, no entanto procuram esconder suas relações, com medo de críticas alheias. Dias e Fernando sentem-se ditosos por serem companheiros de Ana Júlia, contudo o dia que eles mais estimam é o domingo, quando eles desfrutam unicamente da amizade e podem ser apenas Queijo e Goiabada.

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