Crítica Comparada | ‘Augusto Roderick’: Um Diálogo Entre o Clássico e o Moderno na Fantasia Épica
Crítica Comparada | ‘Augusto Roderick’: Um Diálogo Entre o Clássico e o Moderno na Fantasia Épica
No vasto e, por vezes, repetitivo panteão da fantasia épica, uma nova obra se destaca não por reinventar a roda, mas por construir uma carruagem de guerra sofisticada com as melhores peças forjadas pelos mestres do gênero. Augusto Roderick e a caçada ao Sombra Negra é um romance que dialoga abertamente com os pilares da fantasia, desde seus fundamentos míticos até suas expressões mais cínicas e modernas, para criar algo que é, ao mesmo tempo, familiar e surpreendentemente novo.
A estrutura da narrativa ecoa, inevitavelmente, a obra que redefiniu a fantasia política para uma geração: As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin. A decisão de dividir a história em duas frentes — a jornada de aventura de Roderick e a intriga palaciana em Catônia — cria uma tensão semelhante à de Westeros. De um lado, temos o perigo iminente do "Sombra Negra", o equivalente aos White Walkers, uma ameaça sobrenatural que a maioria dos jogadores políticos ignora. Do outro, temos o verdadeiro "jogo dos tronos" sendo disputado por personagens moralmente cinzentos. O Rei Diógenes, com sua mistura de crueldade e trauma, poderia facilmente sentar-se para um jantar de intrigas com Cersei Lannister, enquanto o Mestre da Cavalaria Leon, com seu plano de duas décadas, exibe a paciência e a astúcia de um Varys ou um Mindinho.
Contudo, se a estrutura política é martiniana, o tratamento do herói se aproxima mais da fantasia sombria e revisionista de autores como Joe Abercrombie. O "Efeito Roderick" — a ideia de que o herói, em sua busca por um bem maior, é um catalisador de caos e destruição em massa — é o cerne temático do livro. Roderick não é um Aragorn, um herói unificador cuja presença inspira esperança. Ele é mais parecido com o Logen Ninefingers de Abercrombie: um homem com um código, mas cuja própria existência é uma força da natureza violenta, um "desastre natural" que deixa um rastro de consequências trágicas. A obra não tem medo de perguntar: "O que acontece com as aldeias que o herói 'liberta'? Quem paga o preço de sua nobreza?".
Essa complexidade se aprofunda no trabalho de personagem, que evoca a maestria psicológica de Robin Hobb. Os capítulos dedicados a mergulhar nas retrospectivas de Marcel e Diógenes não são meros artifícios para entregar exposição. São estudos de personagem profundos e dolorosos, que lembram a forma como Hobb nos força a habitar a dor e o trauma de FitzChivalry. A narrativa entende que o ódio de Marcel por Leon, ou o pavor de Diógenes por Roderick, não são traços de personalidade, mas cicatrizes de feridas profundas, e nos convida a explorar essa dor com uma paciência e uma empatia raras no gênero.
Apesar de toda essa modernidade cínica, a fundação do mundo é solidamente clássica, quase tolkieniana em sua profundidade mítica. A "Promessa de Eli Roderick" não é um simples juramento de lealdade; é um pacto ancestral, com a força de um "Juramento de Fëanor", que ecoa através das gerações, moldando o destino de uma linhagem inteira. A mitologia da Guerra Celestial entre anjos e demônios e a estrutura da prisão demoníaca dão ao mundo um peso de história antiga, uma sensação de que os eventos atuais são apenas o capítulo mais recente de uma saga milenar.
E, em meio a toda essa escuridão e peso, a obra encontra tempo para a camaradagem clássica, que lembra a dupla arquetípica de Fritz Leiber: Fafhrd e o Gray Mouser. A relação entre o nobre e poderoso Roderick e o cínico e astuto Valentim evolui para uma amizade genuína, cheia de provocações e lealdade, provando que mesmo nos mundos mais sombrios, a conexão entre dois desajustados ainda é uma força poderosa.
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